08/01/2014
Por Alex Martins Moraes
Por trás do suposto rigor das publicações “de excelência” pode
estar o epistemicídio — a tendência da Academia a sepultar pensamentos
dissidentes. Mas há alternativas.
O que a entrega do prêmio Nobel de medicina 2013 e a divulgação dos
resultados da avaliação trienal do sistema de pós-graduação no Brasil
têm em comum? Além de ambos os eventos terem ocorrido na primeira
quinzena de dezembro, eles também convergem, por razões distintas, em
outro sentido: representam uma boa oportunidade para repensar e criticar
as modalidades vigentes de produção do conhecimento em nosso país.
O biólogo molecular estadunidense Randy Wayne Schekman, que recebeu o
prêmio Nobel junto com seus pares James Rothman e Thomas Südhof,
aproveitou a visibilidade pública proporcionada pela premiação para
instaurar uma forte polêmica com algumas das publicações científicas
mais importantes no campo das ciências biológicas. Em coluna publicada
no The Guardian um dia antes da cerimônia do Nobel (versão em espanhol publicada pelo El País), Randy Schekman acusou as revistas Nature, Science e Cell
de prestarem um verdadeiro desserviço à ciência, difundindo práticas
propriamente especulativas para garantirem seus mercados editoriais.
Entre estas práticas, Schekman menciona a redução artificial da
quantidade de artigos aceitos para publicação, a adoção de critérios
sensacionalistas na seleção das colaborações e um total descompromisso
com a qualificação do debate científico. Schekman conclui sua
intervenção com o seguinte chamado à comunidade científica: “Da mesma
forma que Wall Street precisa terminar com o domínio da cultura dos
bônus, que fomenta certos riscos que são racionais para os indivíduos,
mas prejudiciais para o sistema financeiro, a ciência deve se libertar
da tirania das revistas de luxo. A consequência dessa escolha será uma
pesquisa que sirva melhor aos interesses da ciência e da sociedade”.
Aparentemente refratária a esse tipo de crítica – que, aliás, vem se
tornando cada vez mais comum em todas as áreas do conhecimento –, a CAPES
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) confere
um peso decisivo às publicações em revistas de alto impacto no momento
de avaliar o desempenho e a qualidade dos cursos de pós-graduação
brasileiros. Para a antropologia, área da qual provenho, a avaliação da
CAPES atribui um peso de 40% sobre a nota final à produção intelectual
dos docentes de cada instituição. Na prática isto significa que, para
atingir os conceitos máximos de avaliação (6 e 7), um determinado
programa de pós-graduação deve esperar que todos os seus professores de
mestrado e doutorado efetuem – para citar diretamente o roteiro de
avaliação da CAPES – “a publicação de resultados de pesquisa, sob a
forma de artigos em periódicos científicos, livros e capítulos de livros
qualificados, com destacada proporção e média por docente nos estratos
A1, A2 e B1 do Qualis Periódicos”. Levando em conta a quantidade de
artigos publicados pelos docentes permanentes dos programas de
pós-graduação em antropologia mais produtivos no triênio 2010-2012, o
“ideal” seria, em média, cerca de duas publicações por ano por docente
em revistas indexadas – isto sem mencionar as demais publicações, como
livros, capítulos de livros, audiovisuais, relatórios técnicos, etc.
A avaliação da CAPES na área antropologia/arqueologia não leva em
conta o fator de impacto das publicações, dado que a maioria das
revistas de ciências humanas não dispõe dos meios para quantificá-lo.
Neste caso, a classificação dos periódicos nos estratos A1 e A2 exige,
entre outras coisas, que eles figurem em indexadores internacionais. Já o
estrato B1 requer que figurem em pelo menos dois indexadores, sejam
eles internacionais ou não. Outras áreas, como a medicina, adotam
diretamente uma classificação elaborada com base na mediana do fator de
impacto das revistas, obtidos junto ao Journal Citation Reports (JCR) e calculados anualmente pelo ISI Web of Knowledge.
Isto implica o condicionamento da avaliação da produção científica às
dinâmicas do mercado editorial internacional, com todas as consequências
aventadas por Randy Schekman em seu artigo no The Guardian.
Pior ainda, ao aplicar classificações desta ordem, a CAPES enfraquece o
próprio parque editorial nacional e favorece uma forma questionável de
internacionalizar a produção científica, colocando as revistas mantidas
por universidades públicas e entidades de classe em detrimento de
periódicos estrangeiros, financiados, em sua maioria, pela iniciativa
privada e aferrados aos cânones da propriedade intelectual.
No caso das ciências sociais e humanas, o produtivismo amparado pelas
avaliações da CAPES se materializa numa miríade de efeitos
preocupantes, alguns deles inesperados. Não me refiro apenas à
precarização do trabalho de professores e estudantes ou à perda de
organicidade da produção intelectual decorrente da ênfase obsessiva na
escrita de artigos e de apresentações para congressos. Talvez o aspecto
mais assustador e menos criticado de uma avaliação da pós-graduação
inspirada pela ideologia produtivista seja que ela ampara o
epistemicídio. O epistemicídio – noção desenvolvida, entre outros, por
Boaventura de Sousa Santos – consiste na eliminação ou inferiorização
ativa de algumas formas de conhecimento em favor de outras, consideradas
mais desejáveis no marco de uma dada estratégia de poder. Por exemplo, a
anulação de certos saberes locais, sua folclorização ou deslegitimação
pública foi e é uma modalidade de epistemicídio aplicada sobre diversas
populações ao longo das experiências coloniais na América, Áfria e Ásia.
O produtivismo está a serviço do epistemicídio porque bloqueia ou
dificulta seriamente e emergência de outras formas de construção e
enunciação do conhecimento em um momento de relativa democratização das
universidades públicas brasileiras. Em poucas palavras, o produtivismo
compromete a diversidade das formas de fazer ciência e a própria
criatividade humana no exato momento em que se converte em critério
valorativo hegemônico para a distribuição dos recursos necessários à
produção de conhecimento. Ao erigir-se como critério chave de avaliação
da relevância da produção intelectual, ele impõe sistemas de
hierarquização que só fazem reiterar privilégios epistêmicos de longa
data e comutá-los, logicamente, em privilégios político-institucionais.
Só as modalidades mais conservadoras e pouco imaginativas de fazer
ciência se adaptam, sem grandes problemas, aos atuais imperativos de
quantificação. Já os estudos guiados pela co-investigação prolongada e
participativa, os amplos panoramas exploratórios, as práticas
colaborativas e situadas de escrita científica, etc. não conseguem
sobreviver a esses imperativos.
As ciências sociais e humanas hegemônicas, legitimadas pelo
produtivismo, marginalizam – ou produzem como inexistentes – outras
práticas de produção intelectual; elas impõem seu universalismo abstrato
ao pluralismo real dos discursos e das práxis intelectuais vigentes na
universidade e fora dela. As instituições encarregadas de produzir
conhecimento humanístico manejam orçamentos que, sem serem os mais
robustos do sistema universitário brasileiro, não podem, ainda assim,
considerar-se insignificantes. Trata-se de orçamentos conformados com
dinheiro público acumulado através da cobrança de impostos
majoritariamente regressivos a populações empobrecidas. Estes recursos
têm sido aplicados, frequentemente, no estímulo de uma dinâmica
universitária tendente a afastar estudantes e professores da
problematização dos dilemas reais suscitados pela vida democrática em
nosso país. Na prática, os chamados “problemas de investigação” acabam
sendo inventados nos corredores da academia – ou importados dos debates
prestigiosos e “de ponta” do norte global – para serem “resolvidos” no
“lado de fora empírico”, com as “pessoas comuns” e depois convertidos em
digressões que atendem apenas à agenda editorial vigente no mercado das
publicações acadêmicas. Como se não bastasse, o dinheiro público
destinado à formação de jovens pesquisadores no exterior é por vezes
“investido” na perpetuação da subalternidade epistêmica das academias do
sul global mediante editais que reiteram regimes de legitimidade
científica diretamente coloniais.
Com a hegemonia da quantificação na elaboração dos sistemas de
avaliação científica, cada vez menos a universidade poderá ser concebida
como espaço de estímulo ao florescimento de “ciências sociais de outra
forma”, baseadas no sentido de responsabilidade e colaboração em
pesquisa, no cultivo de vínculos duradouros e qualificados com
comunidades e sujeitos e na articulação entre problemáticas
investigativas e dilemas socialmente compartilhados. Nossos prestigiosos
programas de pós-graduação mais se assemelham organismos autistas,
imersos em transe profundo, alheios a qualquer preocupação com a
importância social do conhecimento científico. O que parece dinamizar a
produção de conhecimento é a própria vontade de produzir racionalizada e
eficientemente. Grosso modo: produção pela produção. Eis o círculo virtuoso (ou seria círculo vicioso?) do saber.
O que fazer num cenário em que a quase totalidade da produção de
conhecimento promovida pelas ciências sociais e humanas encontra-se
submetida a um estandarte geral de avaliação caracterizado pela
(in)determinação quantitativa de toda a qualidade? Michael Eisen,
professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, que reagiu
positivamente às criticas levantadas por Randy Schekman nas vésperas da
entrega do Nobel, sugere a criação de sistemas alternativos de
legitimação das práticas intelectuais. Para ele, todos os cientistas
deveriam “atacar o uso das publicações para avaliar os pesquisadores,
fazendo-o sempre que possível quando contratarem cientistas para o seu
próprio laboratório ou departamento, quando revisarem as solicitações de
financiamento ou julgarem os candidatos para uma vaga” (ver matéria no El País:).
Mais próximos de nós, os estudantes de mestrado em Antropologia Social
da UFRGS, que paralisaram suas atividades acadêmicas na primavera de
2011 para questionar o produtivismo e as genealogias institucionais
estabelecidas também oferecem uma alternativa: “paremos para pensar”.
Esta, que foi a consigna da sua greve, nos alenta com a perspectiva de
que a desestabilização da engrenagem produtivista é possível através da
conformação de uma ética e de uma prática intelectual alternativa. Ao
comentar a greve dos estudantes de Porto Alegre, o sociólogo português
Boaventura de Sousa Santos concluiu o seguinte: “O vosso movimento (…) é
parte dessa sociologia das emergências, porque é gente que está em
busca de uma renovação epistemológica, política e o faz entre si, em
pequenos grupos. Certamente os meios de comunicação não noticiaram,
certamente não foi útil para o currículo deles ou para o programa de
estudos deles, mas estão a emergir outras realidades” (entrevista completa na Tinta Crítica).
Talvez estas práticas “dissidentes” sejam um caminho para explorar
novas lealdades e alianças políticas que conduzam a vias alternativas de
legitimação da produção intelectual. O desafio, portanto, é erigir
espaços profissionais dignos e reconhecidos mais além das aparelhagens
institucionais produtivistas, de forma a superar as tentativas de
epistemicídio e abrir passagem à proliferação de práticas intelectuais
indisciplinadas, ecumênicas e participativas. Assumindo tal postura,
corremos o risco de perdermos, num primeiro momento, o aval dos números,
dos mercados editoriais e da tecnocracia, mas ganhamos um valioso
terreno para construir objetividade e provar a validade dos nossos
postulados: a práxis humana. Neste terreno pode vicejar uma ciência
sucessora, amparada em novas redes de diálogo em política; uma ciência
aberta a programas de investigação nos quais a verdade reside,
parafraseando novamente a Boaventura de Sousa Santos, naquele
conhecimento “que nos guia conscientemente e com êxito na passagem de um
estado de realidade para outro estado de realidade”.
A tarefa parece hercúlea e certamente nem todos os pesquisadores
estarão interessados em aceitá-la. Uma coisa, no entanto, é certa: ao
desenvolver investigações, emitir laudos de demarcação de terras
indígenas, frequentar eventos acadêmicos, escrever textos, produzir
imagens, enunciar discursos políticos, etc. os cientistas sociais
incorporam e colocam em ato suas disciplinas. E é por esta mesma via que
também estão em condições de colocá-las em questão, disputando seus
efeitos e funções. Nós podemos, portanto, atuar no registro da
reprodução, abastecendo o aparelho disciplinar herdado, ou podemos
bloquear a atualização de certas dinâmicas produtivas, exercendo uma
reflexão crítica e pragmática a respeito das ferramentas
político-institucionais disponíveis à ação transformadora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário