Por hugofernandesbio em Ciência e Política
Esse artigo, inicialmente, era para dar
ênfase a uma descoberta extraordinária: a descrição de um fóssil de
serpente com quatro patas, publicada ontem (23/07) na conceituada
revista Science (veja detalhes do artigo original aqui). O exemplar é proveniente da Bacia do Araripe, no sul do estado do Ceará.
Representação gráfica de Tetrapodophis amplectus (Reprodução / Nature / Julius Cstonyu) |
Serpentes (ou cobras, como preferirem)
são animais que descendem de lagartos ancestrais. Isso não era nenhuma
novidade. A presença de vestígios de patas posteriores pode ser
observada no esqueleto de algumas espécies viventes como a jibóia (Boa constrictor)
e principalmente em diversos fósseis que contam com patas traseiras
relativamente bem desenvolvidas. Além disso, análises moleculares
complexas corroboram essas afirmações.
O grande diferencial desse artigo, de autoria principal do
paleontólogo britânico David Martill e de mais dois pesquisadores, é que
o fóssil, nomeado Tetrapodophis amplectus, é de uma espécie
com quatro patas, dedos e garras, enquanto todas as publicações
antecedentes tinham revelado apenas espécies com patas posteriores e que
portanto já haviam perdido ou reduzido as anteriores. A fotografia
revela um fóssil perfeito, em excelente estado de conservação, um
verdadeiro “elo perdido”.
É aí que começa a polêmica e, por isso, resolvi mudar um pouco o foco
desse texto. De acordo com Martill, o exemplar estava depositado no
museu alemão Bürgermeister-Müller e era originalmente oriundo de uma
coleção particular. Mais um gol da Alemanha? Sim, mas tudo indica que
“havia impedimento” dessa vez. O problema é que nunca houve autorização
para que esse fóssil saísse do Brasil. A outra única forma legal para
sua exportação é se ele tiver sido coletado antes de 1942, ano em que
ficou proibida a comercialização de fósseis no país. É isso que alega o
pesquisador, que afirmou que o espécime ali estava por várias décadas.
Mas não há qualquer dado anexado que demonstre a data do depósito.
Chegamos então em um ponto importante. Um fóssil em tão perfeitas
condições e que claramente ilustra um passo importante para a Ciência,
facilmente observável por qualquer paleontólogo especialista no grupo,
dificilmente passaria tanto tempo despercebido.
Max Langer, da Sociedade Brasileira de Paleontologia e Felipe Chaves,
chefe da divisão de proteção de depósitos fossilíferos do Departamento
Nacional de Produção Mineral (DNPM), concederam entrevistas a alguns
órgãos de imprensa afirmando que, “muito provavelmente”, esse fóssil
tenha saído por vias ilegais.
O “muito provavelmente” é aplicado porque de fato não há provas para
isso. O que fazer? Exigir do autor e do museu que mostrem as provas de
que houve legalidade na ação. Cabe ao Governo Brasileiro uma atitude
enérgica contra uma atividade que há séculos vem tolhendo a produção
científica brasileira. Quadrilhas especializadas ainda atuam na retirada
de fósseis na Bacia do Araripe, indubitavelmente um dos sítios
arqueológicos mais importantes do mundo, principalmente para o Cretáceo.
Os maiores beneficiados são colecionadores particulares e pesquisadores
estrangeiros. É preciso que se esgotem os esforços para saber se esse
“muito provavelmente” não é, na realidade, um “com certeza absoluta”.
Em entrevista a algumas fontes, Martill afirma que “não se importa
com a procedência do material”, pois isso não é motivo para atravancar a
Ciência. De fato, a Ciência não pode ser engessada por trâmites
burocráticos fúteis (a exemplo de vários requerimentos que nós,
pesquisadores brasileiros, temos que solicitar para fazer pesquisa
aqui). Entretanto, uma das premissas científicas é pautada pela ética.
Importar-se com a procedência, nesse caso, é um grande exemplo. Uma vez
que o material está depositado de forma irregular em outro país, é
preciso que ele seja repatriado ao seu país de origem. Não é questão de
lei e sim de princípios. Cabe pontuar ainda que Martill é um pesquisador
conhecido por criticar as atuais leis brasileiras de proteção ao
patrimônio genético, além de ser assumidamente comprador de fósseis. A
própria Sociedade Brasileira de Paleontologia já se colocou contra
alguns de seus posicionamentos (confira aqui).
Isso também não exime o Governo da culpa pelo histórico enorme de
descaso em relação às riquezas naturais, paleontológicas e arqueológicas
do Brasil. Parques Nacionais estão às mínguas, sem segurança, sem
estrutura e com pouco incentivo à pesquisa.
A descoberta desse fóssil é um mini retrato da final da Copa do Mundo
de 2014. A vitória foi da Alemanha, o mundo todo gostou de ver e só o
Brasil ficou chorando. E, pelo jeito, ainda vai chorar muito.