domingo, 26 de julho de 2015

Cobra fóssil descrita por cientista estrangeiro foi possivelmente saqueada do Ceará

Por hugofernandesbio em Ciência e Política
Esse artigo, inicialmente, era para dar ênfase a uma descoberta extraordinária: a descrição de um fóssil de serpente com quatro patas, publicada ontem (23/07) na conceituada revista Science (veja detalhes do artigo original aqui). O exemplar é proveniente da Bacia do Araripe, no sul do estado do Ceará.

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Representação gráfica de Tetrapodophis amplectus
(Reprodução / Nature / Julius Cstonyu)
Serpentes (ou cobras, como preferirem) são animais que descendem de lagartos ancestrais. Isso não era nenhuma novidade. A presença de vestígios de patas posteriores pode ser observada no esqueleto de algumas espécies viventes como a jibóia (Boa constrictor) e principalmente em diversos fósseis que contam com patas traseiras relativamente bem desenvolvidas. Além disso, análises moleculares complexas corroboram essas afirmações.
 
O grande diferencial desse artigo, de autoria principal do paleontólogo britânico David Martill e de mais dois pesquisadores, é que o fóssil, nomeado Tetrapodophis amplectus, é de uma espécie com quatro patas, dedos e garras, enquanto todas as publicações antecedentes tinham revelado apenas espécies com patas posteriores e que portanto já haviam perdido ou reduzido as anteriores. A fotografia revela um fóssil perfeito, em excelente estado de conservação, um verdadeiro “elo perdido”.
 
É aí que começa a polêmica e, por isso, resolvi mudar um pouco o foco desse texto. De acordo com Martill, o exemplar estava depositado  no museu alemão Bürgermeister-Müller e era originalmente oriundo de uma coleção particular. Mais um gol da Alemanha? Sim, mas tudo indica que “havia impedimento” dessa vez. O problema é que nunca houve autorização para que esse fóssil saísse do Brasil. A outra única forma legal para sua exportação é se ele tiver sido coletado antes de 1942, ano em que ficou proibida a comercialização de fósseis no país. É isso que alega o pesquisador, que afirmou que o espécime ali estava por várias décadas. Mas não há qualquer dado anexado que demonstre a data do depósito.
 
Chegamos então em um ponto importante. Um fóssil em tão perfeitas condições e que claramente ilustra um passo importante para a Ciência, facilmente observável por qualquer paleontólogo especialista no grupo, dificilmente passaria tanto tempo despercebido.
 
Max Langer, da Sociedade Brasileira de Paleontologia e Felipe Chaves, chefe da divisão de proteção de depósitos fossilíferos do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), concederam entrevistas a alguns órgãos de imprensa afirmando que, “muito provavelmente”, esse fóssil tenha saído por vias ilegais.
 
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Fóssil de Tetrapodophis amplectus provavelmente saqueado (Reprodução / Nature).

O “muito provavelmente” é aplicado porque de fato não há provas para isso. O que fazer? Exigir do autor e do museu que mostrem as provas de que houve legalidade na ação. Cabe ao Governo Brasileiro uma atitude enérgica contra uma atividade que há séculos vem tolhendo a produção científica brasileira. Quadrilhas especializadas ainda atuam na retirada de fósseis na Bacia do Araripe, indubitavelmente um dos sítios arqueológicos mais importantes do mundo, principalmente para o Cretáceo. Os maiores beneficiados são colecionadores particulares e pesquisadores estrangeiros. É preciso que se esgotem os esforços para saber se esse “muito provavelmente” não é, na realidade, um “com certeza absoluta”.

Em entrevista a algumas fontes, Martill afirma que “não se importa com a procedência do material”, pois isso não é motivo para atravancar a Ciência. De fato, a Ciência não pode ser engessada por trâmites burocráticos fúteis (a exemplo de vários requerimentos que nós, pesquisadores brasileiros, temos que solicitar para fazer pesquisa aqui). Entretanto, uma das premissas científicas é pautada pela ética. Importar-se com a procedência, nesse caso, é um grande exemplo. Uma vez que o material está depositado de forma irregular em outro país, é preciso que ele seja repatriado ao seu país de origem. Não é questão de lei e sim de princípios. Cabe pontuar ainda que Martill é um pesquisador conhecido por criticar as atuais leis brasileiras de proteção ao patrimônio genético, além de ser assumidamente comprador de fósseis. A própria Sociedade Brasileira de Paleontologia já se colocou contra alguns de seus posicionamentos (confira aqui).

Isso também não exime o Governo da culpa pelo histórico enorme de descaso em relação às riquezas naturais, paleontológicas e arqueológicas do Brasil. Parques Nacionais estão às mínguas, sem segurança, sem estrutura e com pouco incentivo  à pesquisa.

A descoberta desse fóssil é um mini retrato da final da Copa do Mundo de 2014. A vitória foi da Alemanha, o mundo todo gostou de ver e só o Brasil ficou chorando. E, pelo jeito, ainda vai chorar muito.


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